Entre o balanço e os cisnes
Eu era uma menininha, devia ter uns quatro anos quando meu pai se convenceu de que eu gostava de cisnes. Mas nunca o corrigi. Como poderia? Era só uma garotinha que queria a aprovação do pai e, mais importante ainda, deixá-lo feliz. É curioso como a comunicação pode ser falha e gerar repercussões duradouras na vida de alguém.
Tudo começou porque morávamos em um condomínio de casas em que havia uma praça com um laguinho em frente. Gostávamos de passar tardes de domingo naquela pracinha. Nossa, como eu amava o escorregador. Mas o meu preferido era o balanço. Sentia como se estivesse voando enquanto sentia meu pai me empurrando. Meu herói impulsionando o meu voo, a minha liberdade.
Mas tinha algo que eu não gostava nessa pracinha. Havia um
casal de cisnes. No primeiro dia que fomos passar a tarde lá, uma bela tarde de
domingo ensolarado, eu os vi. Num primeiro momento, até achei que eles eram
fofinhos. Por isso, decidi chegar mais perto para olhar.
Mas, com minha aproximação repentina, os cisnes se
levantaram, agitaram as asas e fizeram movimentos estranhos. No auge dos meus 4
anos, não precisava de muito para ficar apavorada, comecei a ficar agitada,
meus olhos se arregalaram, movimentei meus braços e olhei para o meu pai.
Eu achava que estava estampado na minha cara o medo que eu
sentia. Mas, aparentemente, não. Porque meu pai pegou o celular com um sorriso
no rosto e começou a filmar eu e os cisnes. E ainda por cima chamou minha mãe
para ver como se toda a cena fosse muito divertida, e não assustadora.
Isso me deixou confusa, deixando de lado o medo inicial.
Olhei para minha mãe na esperança de ter algum sinal do que fazer naquela
situação. Mas minha mãe apenas fez um sinal de cabeça que não sei o que
significava e continuou lendo seu livro. Então, eu fiz o que qualquer criança
faz quando sente medo: me afastei dos cisnes e fui para o colo da minha
mãe.
Logo voltamos para dentro de casa. Achei que o fim desse
momento, sem novas brincadeiras, sem mais sorrisos no meu rosto, deixaria claro
o quanto não tinha gostado dos cisnes. Mas, para meu pai, tudo aquilo não
passou de um momento alegre em que a filhinha dele ficou animada com os
cisnes.
Se tivesse parado aí, tudo bem. Vida que segue, seria só um
momento de susto na infância de uma criança. Mas meu pai, não satisfeito, quis
me alegrar ainda mais. Então, começou a comprar coisas relacionadas.
Meu aniversário de 5 anos teve como tema de decoração
fazendinha, e adivinhem o personagem principal? Cisnes. Meu bolo era em formato
de cisnes. Assustador, embora delicioso. Delicioso, mas assustador. Meu
presente foi um daqueles tecladinhos com sons de fazenda... em formato de
cisne.
Como eu poderia dizer que não gosto de cisnes depois de ver
a felicidade dele com toda aquela decoração? Decidi que ia falar e falei, mas
só para minha mãe, porque não queria decepcionar meu pai. Mas consegui apenas
dizer que não gostei da decoração, na esperança e na convicção de que ela
entenderia que era por causa do medo dos cisnes. Mamãe falou que me entendia,
mas que queria que eu tivesse falando antes, o aniversário já tinha começado e
não dava mais tempo de mudar, mas que no próximo ano faríamos decoração do tema
que eu quisesse.
Ela não entendeu que eu não gostava e tinha medo de cisnes.
E isso virou uma obsessão para meu pai, que agia como se achasse que a minha coisa preferida
no mundo fosse cisnes. Então, cada vez ele se superava mais: camisas com
desenhos de cisnes no lago, bichinhos de pelúcia imitando cisnes, livros de
cisnes...
Cada situação que passava e eu não falava que não queria
nada de cisnes, mais difícil era de falar numa próxima situação. E mais rancor
eu pegava dos cisnes. E isso foi influenciando nos direcionamentos da minha
vida, como quando meu pai me incentivou muito a ir para a faculdade de veterinária.
Como eu sempre gostei de cachorros e gatos, pensei que
talvez pudesse mesmo ser a escolha certa para mim. Mas, meu pai sonhava que, um
dia, eu fosse trabalhar com animais silvestres. E foi o caminho que segui. Pensando
bem, talvez se não fosse por isso, mesmo gostando de cachorro e gato, talvez
tivesse escolhido outra área. E, no fundo, acho que talvez eu estivesse apenas
tentando agradar meu pai. Desde o dia que conheci os cisnes assustadores.
Agora, sou veterinária, mas, em vez de me sentir realizada,
a minha menininha interna está ainda tentando agradar o pai. Não vou mentir, eu
adoro minha profissão, mas é um misto de amor e medo que nunca superei
totalmente.
Então, um dia desses, uma vizinha me chamou implorando ajuda
urgente. Quando fui ver o que estava acontecendo, no campinho perto de casa, tinha
um garotinho agachado no chão, chorando com um cachorrinho que não tinha uma
das patas e tinha sido atacado por um cachorro maior na rua.
Peguei-o e rapidamente agi sem pensar em nada, na adrenalina,
para tentar salvá-lo. Apesar da rapidez com que tudo aconteceu, ao segurá-lo em
meus braços, algo dentro de mim começou a despertar. Olhei para ele e vi não
apenas um animal, mas um símbolo da liberdade e da alegria que eu sempre quis
ter.
Enquanto cuidava dele, não pude deixar de pensar em como
tinha passado tanto tempo tentando agradar meu pai e em como minha vida tinha
sido moldada pelo medo dos cisnes. Quando fui entregá-lo para o menininho, só
então, notei que ele usava uma prótese numa das pernas.
Enquanto o menino acariciava o cachorrinho, ele olhou para
mim e falou:
- Ele não tem medo de correr, mesmo sem uma perna. Você acha
que ele pode ser feliz assim?
Essa pergunta me pegou de surpresa e fiquei em silêncio. Ele
continuou:
- Eu tenho medo de coisas, mas sempre que olho para o meu
cachorro, eu esqueço o medo. Meu pai diz que se eu der muito amor para ele, ele
será sempre feliz. Acho que papai está certo.
O menino agradeceu e saiu correndo com o cachorrinho.
Isso automaticamente me fez pensar nos meus próprios obstáculos
e em como me impediram de viver plenamente. Mas ali na minha frente havia dois seres
leves e livres que aproveitavam a vida e eram felizes apesar das dificuldades.
Naquele instante, uma ideia assustadora tomou forma. Eu
precisava me libertar das expectativas que carregava desde a infância. Então,
em vez de voltar à minha rotina habitual, fui visitar meu pai.
Pela primeira vez na vida, tomei coragem para falar para ele
uma verdade simples, para a maioria das pessoas boba, mas para mim cheia de
peso. Expliquei para ele não apenas meu amor pela veterinária, mas também como
a insistência dele nos cisnes me deixou com um peso que eu não conseguia mais
carregar.
Os cisnes, embora belos, representavam um medo que nunca
enfrentei e que precisava superar. Falei sobre a liberdade que senti ao cuidar daquele
cãozinho tão especial. Eu vinha trabalhando com animais silvestres para honrar
os desejos dele, mas eu precisava que ele entendesse a importância de eu ser
quem realmente sou.
Meu pai chorou, se sentiu tão mal por nunca ter percebido o impacto que seus atos tiveram em mim e pediu desculpas por não ter perguntado o que eu realmente gostava. Ele me motivou e incentivou muito a começar a trabalhar com animais domésticos.
Naquele momento, percebi que a comunicação que havia faltado na infância finalmente se tornara um diálogo. A partir daquele dia, não só o meu amor pela veterinária floresceu ainda mais, mas também a relação com meu pai se fortaleceu. E, quem sabe, um dia, eu pudesse até aprender a aceitar e até mesmo admirar os cisnes...
Alguns meses depois, enquanto assistia a um grupo de
filhotes brincando em meu novo consultório, percebi que estava pronta para
voar. A liberdade é aquela sensação efêmera de ser impulsionada pelo meu pai para
cima em um balanço, onde o céu é o limite e parece ao alcance das mãos. Mas
também é a coragem de me soltar das amarras do passado e poder ser eu mesma.
Os filhotes vieram brincar com meus dedos e eu senti meu coração leve, como se estivesse me lançando para o céu, finalmente pronta para explorar novos horizontes e descobrir o prazer de ser verdadeira comigo mesma.
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