Filme 'É assim que acaba': psicologia e relacionamentos

 O famoso livro 'É assim que acaba' ganhou as telas dos cinemas e tem dado o que falar. Naturalmente, como geralmente acontece com filmes que surgiram de livros, muitos leitores ficaram decepcionados com mudanças e omissões de detalhes e acontecimentos importantes que ocorrem no livro. Contudo, não há como negar a importância desse filme para conscientizar as pessoas sobre a violência contra a mulher. 

Através das experiências de infância de Lily Bloom, protagonista do livro e do filme, podemos perceber o impacto que a violência doméstica pode ter na vida de uma pessoa. Conhecemos essas experiências de Lily em flashbacks ao longo do filme, enquanto, no momento atual, acompanhamos a relação de Lily com um bonito e rico neurocirurgião, Ryle.

Eles se conhecem no edifício onde ele trabalha e já rola um clima, embora o chamado do trabalho dele interrompe o momento. Contudo, ao abrir a floricultura que era seu sonho, Lily acaba contratando uma moça que, como descobriu depois, era justamente a irmã de Ryle, o que levou a novos encontros entre a florista e o neurocirurgião.

As cenas de amor e atração entre Ryle e Lily logo nos faz pensar que será apenas mais um filme de romance comum. E é interessante experienciar essa manipulação de expectativas, em que o filme nos leva a crer numa relação apaixonada e deixa inicialmente os momentos de agressão dúbios, para somente depois a personagem - e o espectador que acompanha a visão dela - processar a realidade e entender melhor a situação em que Lily se encontrava. 

Assim, logo novos acontecimentos mostram como nem tudo é o que parece, e a relação que parecia tão linda não era nem de longe um mar de rosas. Isso porque, conforme eles começam a viver juntos, Ryle vai revelando seu lado impulsivo e agressivo. 



Esses momentos reavivam traumas de infância de Lily diante das agressões que sua mãe sofria na relação com seu pai. Note que Lily tinha clareza do quão errado era o que o pai fazia, embora a mãe não reagisse, enquanto na atualidade quando o mesmo ocorre com Lily ela não percebe facilmente. É comum isso acontecer no mundo real, de forma que as pessoas de fora da relação abusiva percebem mais facilmente essa violência, enquanto a vítima fica envolvida na narrativa do abusador.

Ao mesmo tempo, o filme também nos revela questões do passado que explicam um pouco o passado sombrio de Ryle. Assim compreendemos um trauma de infância dele que teve grande repercussão na sua vida e que nos ajuda a entender as dificuldades emocionais dele - embora não justifiquem nem tornem as atitudes dele mais aceitáveis. 

O filme retrata alguns 'incidentes' para o espectador em algumas cenas, como quando Ryle se queima no fogão e de repente na confusão do momento ele movimenta o braço para trás e acerta o rosto de Lily, por acidente. Ao menos, é o que parece. Como se lidar com isso já não fosse complexo suficiente, soma-se a isso o reencontro, por acaso, de Lily com um antigo amor de infância, Atlas, o qual também via sua mãe sofrer violência doméstica e foi expulso de casa ao tentar defendê-la. Portanto, tal encontro traz à tona antigas memórias sobre aquela época e, inicialmente, Lily decide ir atrás de Atlas para saber sobre como ele está.

Após esse breve reencontro, Lily tenta evitar o restaurante onde ele trabalha, provavelmente em respeito à sua relação com Ryle. Contudo, ela não consegue evitar a decisão da amiga de ir jantar justamente nesse restaurante. Assim, ela, Ryle, a amiga e o marido da amiga vão lá jantar.

Atlas vê a mão machucada de Ryle e o rosto inchado de Lily. Soma 1+1 e chega a 2. Sai irritado e Lily incomodada resolve ir ao banheiro. Atlas entra no banheiro com ela e questiona, Lily insiste em dizer que foi apenas um acidente. Mas Ryle vai atrás e pega os dois saindo do mesmo banheiro e ali começa uma briga, em que Atlas é o mais agressivo. Ryle sai do restaurante e Lily vai atrás se justificando e tentando reconciliar. Ryle aceita e pede que seja qualquer um menos Atlas.

Mas Atlas vai até a floricultura de Lily pedir desculpas pela briga, eles conversam e Atlas dá seu número para Lily, a qual diz que não precisará, mas ainda assim o mantem consigo. Quando Lily pede para Ryle colocar seu celular para carregar, o celular cai e a capinha sai, revelando o papel com o número de Atlas. Ao menos essa foi a justificativa de Ryle, embora seja bem possível que ele tenha mexido intencionalmente no celular, o que é comum em relacionamentos abusivos.  

Ryle fica transtornado com a descoberta e sai, mas Lily insiste em ir atrás dele, ele continua fugindo. Ela continua tentando tocar nele e acalmá-lo. Até que ele pega ela e a tira da frente dele, fazendo-a cair da escada. 

Ele cuida das feridas dela, mas distorce a realidade fazendo-a acreditar que ela tropeçou e foi só um acidente. Tal cena é um fiel retrato de tantas relações tóxicas, em que é extremamente comum que, em tudo que acontece, o abusador maneja e reconstrói a realidade, de forma que a vítima sempre acredita e muitas vezes se sente até mesmo culpada.

E Lily continua na relação, acreditando que está tudo bem e que Ryle a ama. Assim, ao longo do filme, o roteiro nos dá alguns indícios de que a Lily não é uma 'narradora confiável', pois ela está envolvida naquela relação, com emoções por Ryle, envolvida na narrativa que ele constrói e acredita que ele não faria mal a ela

Sua ficha só cai quando Ryle começa a tentar fazer sexo com ela e a forçá-la a isso, por mais que ela peça para ele parar. Lily foge e, sentada no banco do seu carro, ela começa a relembrar as situações sem as distorções - lembrando tal como realmente aconteceu mas que, até esse momento, ela não conseguia perceber ou admitir para si mesma. Assim, ela percebe que foi empurrada da escada, que o acidente no fogão não foi acidente...

Ela busca a ajuda de Atlas, o qual a leva ao hospital e a acolhe em sua casa. Então ela descobre que está grávida e compartilha com Atlas seu medo de não dar conta de cuidar da filha. Atlas revela a ela que, na juventude deles, quando ele a viu observando-o num dia e no outro ela deu comida para ele, ele estava prestes a se matar e que foi a ação dela que o salvou, que ela era capaz do que quisesse.

Lily então volta a morar sozinha e tem sua bebê. O filme dá alguns indícios de que, embora separados, Ryle participaria dos cuidados da bebê ao mostrar ele montando o berço, ele no nascimento da filha e o fato de a Lily estar disposta a colocar na filha um nome em homenagem ao irmão de Ryle. 

Diferentemente do livro, compreendo que o filme optou por deixar em aberto se Lily ficaria com Atlas ou não, visto que eles se encontram na rua, novamente por acaso, e ficam felizes em saber que ambos estão solteiros. O que viria a partir daí, só Deus sabe. 

Enquanto no livro Lily opta por ficar solteira. Tal decisão, em minha opinião, parece o melhor cenário, visto que Atlas também teve alguns indícios de explosão de raiva e Lily ainda tem muitos traumas para processar.

O fato de o filme ter mostrado ações mais brandas de Ryle do que no livro, onde ele demonstrava ações ainda mais violentas e inclusive estupro, incomodou muitos dos leitores. Talvez isso tenha sido uma decisão dos produtos para que o filme pudesse ter uma classificação indicativa mais baixa.

Como isso tornou os atos de Ryle um pouco menos desprezíveis do que de fato foram no livro, acredito que isso tenha influenciado em outras mudanças no filme, como o fato de ser a irmã de Ryle a contar para Lily o trauma de Ryle por ter matado o próprio irmão num acidente e a própria irmã dizer para Lily que ela não merecia o sofrimento de continuar com Ryle. Isso porque se fosse o próprio Ryle a contar isso para Lily poderia criar no espectador (que não leu o livro) mais compaixão por ele e dificultar mais a construção de uma imagem de abusador desse personagem.

E embora seja chato ver detalhes importantes do livro serem mudados, compreendo que esse fator tenha um lado muito positivo: muitas mulheres sofrem violência da forma como foi retratada no filme, ou seja, violência não tão explicita, e não percebem isso justamente pela narrativa que o abusador constrói. Ter um filme que mostra a violência na sua forma mais implícita é uma boa forma de mostrar para essas mulheres que, mesmo quando a violência parece menos explícita, ainda assim é violência e que a mulher merece sair dessa situação e buscar uma vida melhor. 

Assim, o filme ainda consegue tratar e conscientizar sobre a violência doméstica, de forma discreta embora evidente, de forma que tornou esse assunto intrincado ao resto do enredo em vez de focar somente no ato da violência em si. Podemos observar isso no jogo de câmera, no intricamento desses momentos com os flashbacks do passado, na ilustração das cenas a partir da visão da personagem em vez do que aconteceu de fato, na desconfiança dos personagens que estavam fora da relação e no discurso dúbio do "antagonista" contradito pelos sinais de hematomas.

É um filme que vale a pena ser não apenas visto como também ser refletido e processado. A violência contra a mulher infelizmente ainda é muito frequente em nossa sociedade e é uma questão urgente de ser tratada, precisamos de conscientização e ações para caminhar para um futuro urgente em que as mulheres possam ser livres e viver suas relações de forma digna e saudável. Há muitas Lily's por aí, seja sofrendo violência de forma menos evidente como no filme, seja sofrendo violência mais explícita como no livro. Precisamos enquanto seres humanos e sociedade encontrar essas mulheres e apoiá-las em busca de uma vida digna.

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